Os documentos cartorários, principalmente inventários e testamentos ganharam maior relevância como fontes de pesquisa a partir das mudanças de paradigmas na historiografia ocidental introduzidas pela Escola dos Annales, na década de 1930. Essa renovação abriu espaço para abordagens interdisciplinares, envolvendo a História, a Geografia, a Economia, a Sociologia, a Antropologia e outras áreas das Humanidades. Nesse contexto, documentos até então pouco explorados pela historiografia tradicional revelaram-se fundamentais para o estudo da vida cotidiana, da religiosidade, da sociabilidade, das atitudes diante da morte, das práticas alimentares, das festas, vestimentas e outros aspectos culturais.

No período colonial da antiga capitania de São Tomé, posteriormente chamada Paraíba do Sul, inventários e testamentos foram produzidos em meio às transformações sociais impulsionadas pela economia açucareira a partir do século XVIII. Esses documentos registram vivências de diferentes grupos sociais, como grandes e pequenos proprietários, comerciantes, padres, profissionais liberais, ex-escravizados e pessoas comuns. Além de evidenciarem a dinâmica da economia açucareira, permitem compreender a distribuição de terras, as relações de poder político e eclesiástico, o sistema escravocrata e diversas práticas sociais e culturais da região.

Os inventários, por exemplo, arrolam bens móveis e imóveis com valor econômico, destinados à partilha entre herdeiros. Neles encontramos descrições de propriedades rurais e urbanas, engenhos com maquinário e equipamentos, além da avaliação de escravizados, muitas vezes com informações sobre nacionalidade, profissão ou especialização. Já os testamentos oferecem uma perspectiva mais pessoal: revelam origens familiares, atividades profissionais, instruções sobre funerais e posses, bem como expressões da religiosidade, como a devoção a determinados santos, a escolha da igreja para celebração de missas e a filiação a irmandades. Também registram relações sociais e econômicas, incluindo dívidas, créditos, laços familiares e a destinação de escravizados, que poderiam ser transferidos ou alforriados.

Esse conjunto documental integra o fundo Acervo Cartorário, resultado de parceria entre a municipalidade e o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Considerado um dos mais importantes do norte fluminense, abrange cerca de 32 mil processos das esferas cível e criminal, datados entre os séculos XVII e XXI, com destaque para 5.148 inventários e 1.392 testamentos. O acervo foi recolhido do antigo Fórum Municipal de Campos dos Goytacazes, em grande parte em estado avançado de deterioração, e passou a receber tratamento técnico a partir de 2007, por meio do projeto Preservação do Acervo Cartorário, patrocinado pela Petrobras e pelo Ministério da Cultura via Lei Rouanet.

Em 2024, o Arquivo Público Municipal Waldir Pinto de Carvalho foi contemplado com recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) para execução do projeto “Conservação, restauração, digitalização e divulgação de processos cartorários de Inventário e Testamento do Arquivo Público Municipal Waldir Pinto de Carvalho (1698-1807)”. O tratamento técnico já iniciado foi continuado e ampliado, garantindo a digitalização e o acesso público a um conjunto de 648 documentos produzidos entre 1698 e 1807, período correspondente ao Brasil Colônia. A iniciativa representa um marco para a difusão e valorização da memória regional, possibilitando não apenas a salvaguarda desse patrimônio documental, mas também sua integração em pesquisas acadêmicas, projetos culturais e ações educativas.